quarta-feira, 29 de julho de 2009

Do leite que derrama Chico em seu mais novo romance


Um ancião em uma cama de hospital, uma doença de fim de vida, algumas enfermeiras, uma filha e muitas memórias a serem desfiadas. Esses são os marcantes elementos que compõem a narrativa de Leite Derramado, o mais recente romance de Chico Buarque, publicado no presente ano. Através de um monólogo proferido pelo narrador do texto, ele, que é também o personagem principal desta trama, nos dá a ver as suas memórias familiares, que nos vêm em um misto de desordem estrutural e cronológica típica de lembranças resgatadas em fundo de gaveta.
A narrativa do romance possui um único foco que é a primeira pessoa. O narrador toma forma na personagem do ancião que vai nos contar a história da linhagem de sua família desde seus ancestrais mais antigos até os seus últimos descendentes com os quais conviveu. Logo de início, Chico Buarque joga com a credibilidade do seu narrador, e como conseqüência disso, com a credibilidade das histórias que este conta. Fica a cargo do leitor a decisão de confiar ou não nessas histórias rememoradas, e, por conseguinte, considerar ou não o narrador como confiável.
Muitos são os teóricos que põem em dúvida a credibilidade de um narrador em primeira pessoa, já que entendem que ele narra a história apenas pelo seu ponto de vista. Um exemplo clássico desta dúvida quanto à credibilidade da narrativa em primeira pessoa é o célebre romance de Machado de Assis, Dom Casmurro, em que o leitor jamais saberá se Capitu traiu ou não Bentinho visto que só se possui uma única versão da estória de amor. O leitor deste romance só tem posse do ângulo de visão de Bentinho acerca dos fatos que são narrados em primeira pessoa por um narrador marcado pelo ciúme, pela desconfiança e pela amargura.
Assim também é o foco da narrativa de Leite Derramado, em que é dado ao leitor apenas um ponto de vista acerca das memórias do ancião que narra a história; o ponto de vista dele próprio. Isso gera um outro fator que pode descredibilizar o narrador do romance ainda mais: o fato deste já ir em idade avançada. É uma questão cultural dos países ocidentais em geral o fato de não se dar crédito ao que dizem os idosos. Isso porque é considerado que, por serem de idade alta, são acometidos por eventuais doenças que podem prejudicar a memória, fazendo com que misturem fatos, datas, situações; e deixando suas narrativas sem crédito.
É dessa maneira que se mostra o nosso narrador. Deitado em sua cama no hospital, ele nos mostra que ocupa aquele lugar em virtude de doenças que lhe foram provocadas por conta da sua própria idade avançada. As lembranças lhe vêm embaralhadas e ele tem plena consciência deste fato, parando, por vezes, a narrativa para mostrar ao seu leitor/ouvinte a confusão da cronologia dos acontecimentos.
Essa consciência que tem o narrador de que suas lembranças lhe vêm embaralhadas, sem uma ordem cronológica dos acontecimentos, pode ser considera como um fator que gera credibilidade a ele. Isso porque essa noção de que a sua memória pode, em alguns momentos, atraiçoá-lo mostra ao leitor/ouvinte que o narrador sabe-se confuso. Dessa maneira, o leitor/ouvinte consegue identificar as traições do que é narrado e fica livre para dar crédito ao que considerar que seja verídico.
O romance de Chico Buarque trabalha, em sua estrutura de base, com uma lógica muito recorrente na literatura universal que é o fluxo de consciência. Essa é a base estrutural da narrativa de Leite Derramado, em que as memórias de uma linhagem familiar tradicional são rememoradas através do fluxo de consciência de seu narrador. Sem respeitar cronologia ou veracidade o narrador vai contando sua história à medida que ela vem surgindo em sua mente. Repete os fatos, mistura as datas, narra o mesmo assunto de modo diferente, assim como ocorre com qualquer narrativa que é rememorada a partir do tempo psicológico que não tem limites cronológicos.
Outro ponto interessante de se notar no livro de Chico Buarque é a temática que nele é trabalhada. As memórias do narrador versam sobre um único assunto: desbravar a saga de sua linhagem que vai de um grande auge à decadência. Essa decadência de famílias de grande nome vem sendo uma temática muito recorrente nos romances modernos.
Em Leite Derramado, nota-se um narrador que não se conforma com a trajetória decadente que percorreu a sua família. Por ter muita idade, esse narrador pôde acompanhar muitos dos momentos áureos de sua linhagem, mas também acabou por presenciar todas as derrotas porque passou a sua família até chagar à decadência. Acostumar-se com essa nova situação é um sofrimento para ele. Quando jovem teve dinheiro e prestígio. Hoje, velho e uma cama de hospital, depende do dinheiro e da boa vontade alheia. E de nada adianta dizer que é um legítimo Assumpção, pois este nome já não é mais reconhecido.
Tudo, desde a estrutura narrativa até a temática abordada em Leite derramado é preciso. Sem dúvida um livro em que o autor consagra seu estilo. Chico Buarque se mostra, nesse livro, não mais como apenas um grande compositor, mas também como um grande romancista.

Um comentário:

  1. Amei, me lembrei tanto da dona Mariazinha, sabe como é, deu até vontade de escrever a vida dela, mas acho que seria quase um plágio.hehehe. Lembranças que ocupam um salão inteiro e as recentes se espremem num canto de um quarto. Chico é tudo de bom!

    ResponderExcluir